sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

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Poesia brasileira: a boa safra de 2010-2011

por Claudio Willer

Terão os poetas contemporâneos brasileiros enlouquecido? Entrado em pânico? Em irrefreáveis surtos visionários?
É a impressão que se tem ao ler versos como estes, do recente Uma Cerveja no Dilúvio (7 Letras, 2011), de um poeta do Rio de Janeiro, Afonso Henriques Neto:


há um incêndio a lavrar pela noite
lambendo as páginas da agonia
verbo carbonizado nos cornos do apocalipse
nas cenas de uma bíblia enlouquecida
lábios por onde a poesia
vomitara lascas de labaredas
árduas centelhas do mito
evangelhos soterrados sob negros estampidos
relâmpagos solvidos em rochedos de neblina


Veemente anúncio de um fim do mundo em tom, ritmo e imagens que lembram Jorge de Lima.
Encontra eco em outro lançamento recente, Poemas Perversos (Pantemporâneo, 2011), de Celso de Alencar, paraense radicado em São Paulo:


Devolvamos o rio
Devolvamos tudo aquilo que lhe pertence
[...]
Devolvamos a morte estremecente
e, além da morte,
o cemitério viajante e afundado.
Devolvamos tudo, inclusive o leito experimentado
que acolhe a vastidão de nomes inteiros
e a vida com suas mamas profundamente desfiguradas.
Devolvamos o rio.


Afonso Henriques Neto e Celso de Alencar são poetas maduros, que estrearam, respectivamente, na década de 1960 e 1970. Seus lançamentos estão entre os mais importantes do biênio. Outros mais jovens exacerbam essa dicção através de imagens, de modo não discursivo. Proclamam seus apocalipses pessoais (no duplo sentido da expressão apocalipse, como fim de mundo e revelação).

Um deles, Chiu Yi Chih, de São Paulo, com Naufrágios (Multifoco, 2011):

inclino-me áspero pinheiro / nos ecos do Amargo
a rachadura é dourada / flor que desafeiçoa
nada nos assegura neste assombro de pássaros.
sinistra morada, esta que nos lança à desaparição.
irreparável símbolo, meu rosto: planeta fora do seu berço

Faz par com o vigor de Augusto de Guimaraens Cavalcanti, do Rio de Janeiro, em Os Tigres Cravaram as Garras no Horizonte (Editora Circuito, 2010): tropicália exacerbada, contracultura atualizada por um poeta jovem, releitura do melhor da beat, surrealismo hoje.


Querem mais imagens poéticas? Mais expressões não discursivas? Novos exemplos de poesia onírica? Que tal José Geraldo Neres, do ABC paulista, com sua prosa poética em Olhos de Barro (Multifoco, 2010): “Água e silêncio. Dedos vazios mergulham à procura dos peixes outrora semeados. Nem girassóis, nem milagres e a carne das palavras. Dou ao tempo outro cardume”. Texto onírico, regido pelo deslocamento.


A seu lado – lançaram juntos – Edson Bueno de Camargo em Cabalísticos, enunciando uma poética e citando Ginsberg:

o poeta é sacerdote
da própria religião
[...]
Rimbaud foi
bruxo a seu tempo
usou a extinção de sua quintessência
e fez poesia além da palavra






A destacar, também, uma obra coletiva fio, fenda, falésia (edição das autoras, Proac-São Paulo) de Érica Zíngano, Renata Huber e Roberta Ferraz, que acabara de lançar lacrimatórios, enócoas (Oficina Raquel, 2009). Comparecem com uma apoteose da fusão de gêneros, da escrita em todas as direções e possibilidades, mas sempre bem resolvidas, com um padrão consistente nessa diversidade: livro que não deveria ser apenas lido, porém estudado e carinhosamente decifrado.


As novas possibilidades da edição – do hipertexto em papel de Érica, Renata e Roberta, passando pelos objetos mais estranhos da produção contemporânea, propositadamente confundindo tudo, à leveza digital de Elizabeth Lorenzotti: a experiente jornalista e poeta estreante mostra como o macrocosmo está evidentemente presente no microcosmo (desde que se saiba ver) com As Dez Mil Coisas (Amazon, 2011), disponível só em e-book.
Analogia coexiste harmonicamente com ironia em Livro Ruído (Eucleia, 2011), de Davi Araujo, paulista prolífico que encontrou editor em Portugal e escreve sobre “Adeus a deus” e “O teatro e meu duplo”.



Poesia se faz no Brasil todo. Josoaldo Lima Rego já foi chamado por mim de “maranhense cosmopolita” por ver “Uma Nadja, sorrateira pelos becos” e proclamar que “é preciso sonhar a anistia dos manicômios” em Paisagens Possíveis (7 Letras, 2010). A propósito de maranhenses cosmopolitas, além de literariamente elegantes, Samarone Marinho, com Atrás da Vidraça (7 Letras, 2011), incluindo a inquietante série intitulada “(imemoriáveis aleijões beckettianos sussurrados da janela do quarto)”.



São exemplos. Haveria mais. Mineiros alquimistas, místicos de elevada dicção, como Andityas Soares de Moura, com Aurora Consurgens (7 Letras, 2010), e Abílio Terra, com Numa Floresta de Símbolos (Alcance, 2010). Mostras de que o romantismo é contemporâneo, em O Pó das Palavras (Ponteio, 2011), do carioca Claufe Rodrigues, experiente difusor e divulgador de poesia.



A safra de poesia de 2010-2011 foi vigorosa. Cabe perguntar se a crítica se deu conta. Infelizmente, à exceção de uma bela resenha de Moacir Amancio (outro poeta extraordinário) tratando de Poemas Perversos, de Celso de Alencar (publicada no suplemento Sabático de O Estado de S. Paulo), nada disso foi comentado, ou quase nada – nossos críticos continuam preferindo os poetas inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bem-comportados.


E continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que se passa ao seu redor. Uma Cerveja no Dilúvio, de um poeta da qualidade e importância de Afonso Henriques Neto, ainda não ter recebido nenhuma resenha importante em órgãos da grande imprensa – assim pagando o preço por ser avesso ao mundanismo literário – é admissão de alheamento geral.



Talvez tão importante quanto as boas edições em livro seja a ampliação dos espaços públicos, das chances de poetas se mostrarem ao vivo e se comunicarem com leitores efetivos ou potenciais. Em Belo Horizonte, uma programação semanal e já tradicional. No Rio de Janeiro, aquelas récitas, proliferando há décadas.




Em São Paulo, além da importante função da Casa das Rosas como polo irradiador, graças ao esforço de Frederico Barbosa e colaboradores, estimulando novos saraus (uns 40 por mês na cidade toda, ao que consta), há programação em unidades do Sesc, em bares e casas noturnas, no refinado Lugar Pantemporâneo. E um novo e importante espaço institucional para a poesia, com a abertura da programação de leituras e palestras no Centro Cultural São Paulo, coordenado por Claudio Daniel, também poeta de qualidade.




Caberia mencionar alguns bons mecanismos de subvenção, como o Programa de Ação Cultural (Proac) em São Paulo, compensando o preconceito de alguns editores e muitos livreiros. Existem, também, premiações inteligentes. Precisaria, ainda, falar das revistas que publicam poesia; da continuidade de Coyote, do reaparecimento de Babel, entre outras. E do que circula no meio digital. Mas isso demandaria outra matéria. Importa registrar que só não repara na boa poesia contemporânea brasileira quem não quer; quem sofrer de total inaptidão para o gênero.





“Nossos críticos continuam preferindo os poetas inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bem comportados. E continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que se passa ao seu redor”


Claudio Willer é poeta, ensaísta, tradutor e autor, entre outros livros, de Um Obscuro Encanto – Gnose, Gnosticismo e Poesia (Civilização Brasileira, 2010) e Geração Beat (L&PM Editores, 2009)

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