sábado, 7 de julho de 2012

Na minha cidade tem poetas, poetas,





É absolutamente incrível como o modo de se cantar uma canção pode nos influenciar em sua interpretação, é como se o cantor pudesse imprimir sua alma no canto. O som da voz humana dotado de harmonia, já foi acreditado como criador de universos, os deuses criadores, são descritos como de bela voz, ou virtuoses em seus instrumentos musicais. Tupã é o grande som primordial, Shiva com seu tambor e sua dança alucinada, e assim todas as culturas de uma certa forma tem no mito criador, o som.

Outro dia na Biblioteca Cecília Meireles, no encerramento do Projeto Literatura Viva em Mauá, ouvi o grupo musical Canto Livro, que interpretou diversas canções cujo eixo norteador era a literatura e principalmente a poesia. A primeira canção interpretada pela cantora Joana Garfunkel foi uma música que há muito tempo já a tinha ouvido, mas esquecido completamente, e o modo com que a cantora deu sua cor, despertou-me curiosidade,  de querer saber mais sobre aquela melodia, e em especial pela letra, que fala do ofício de poetar, com uma certa ironia.

Após uma pesquisa, descobri que a música original era do uruguaio, Leo Masliah e que a versão original era muito mais irônica, quer pela interpretação, ou mesmo com algumas palavras muito duras aos poetas. O tom é a galhofa, resumindo os poetas como uma classe de chatos, dos que vendem livros no vão livre do MASP, ou algo parecido que deve ter em Montevidéu. Quem nos salva é Milton Nascimento, que mesmo mantendo a letra de Masliah, dá um tom melodioso à canção, salvando os poetas de seus pecados, em uma suavidade e caminho ao sublime. Mais tarde Milton vai interpretar uma versão em português, de Carlos Sandroni, onde grande parte do escárnio de Masliah se dissolve, cria-se uma fina ironia, onde havia uma clara irritação.

O interessante é que mesmo Leo Masliah, mostra em sua letra uma íntima proximidade com o ato de escrever poesia,
 há momentos que soam como piada interna, que os poetas rirão mais do que os não afeitos aos processos do poema. Soa como se o autor de uma certa forma ria de si mesmo. Ser poeta é em si um contra-senso, uma criatura presa entre a inventividade humana que se materializou em tantas construções técnicas e uteis, e o poeta põe esta mesma inventividade à serviço do inútil e do incerto.  O poeta incomoda o prático, o pragmático e o racional, ou algo que funcione ou tente funcionar como tal.

Outra grande malandragem de Sandroni, é mudar a ordem de alguns versos, de tal forma com que o arranjo das palavras crie uma atmosfera menos irritante das posturas dos poetas, na versão original, os poetas incomodam, na versão em português há uma visão mais sublime que histriônica.

Em minha experiência de escrever poemas e tentar fazer com que as pessoas os leiam, passei por diversas fases, até chegar no momento impreciso que chamamos de maturidade, em que deixamos de crer no proselitismo em que todo crente fanático em alguma coisas por vezes se mete. Existem pessoas que parecem que esta maturidade ou sanidade nunca chega, paro às vezes para pensar se não são estes loucos e chatos, que insistem em ler seus versos em enterros, casamentos e em toda a oportunidade que eles acham ser conveniente.  A crença na certeza absoluta desveste o ridículo. E toda a cidade tem estes poetas. Alguns se dão bem, viram quase oficiosos, presentes em todas as manifestações.  Mas temo que quanto mais tendem à aparecer menos poéticos se tornam, e mais afastados da literatura e da arte ficam. Fico a imaginar se Masliah fala especificamente destes poetas, ou se para ele todos os poetas estão nesta categoria. Sendo o cantor e humorista uruguaio, uma espécie de Platão a expulsar todos os poetas da República. Ao meu turno, penso os humoristas como uma espécie de vigilantes do comportamento aberrante, sugerindo no fundo de suas piadas um certo conservadorismo, aplicadores de um fator punitivo contra aqueles que se comportam mal.

O que separará os conhecidos e importantes, os cânones, os esquecidos, será o tempo, e a possibilidade de sermos lidos. Sempre haverá um livro perdido no fundo de um sebo que despertará um novo poeta, que começará tudo de novo. Há inúmeras histórias para serem contadas e descobertas.

O certo é que ao longo da história das civilizações, sempre  aparecem poetas, contadores de histórias, cantores de arengas aos deuses e santos, perseguidos e mortos, ou carregados nos braços do povo, moradores das prisões ou dos palácios, com estátuas nas praças ou mendicantes nas pontas das feiras. Toda cidade tem seu ou seus poetas, quase sempre desacreditados ou evitados, ou não, sempre aparecendo nas casas nas horas da refeição, sempre com um livro pronto debaixo do braço, sempre dispostos a lerem seus poemas, querendo as pessoas ouvirem ou não.

O certo que mesmo o mais humilde dos poetas está eivado do sublime, carregam o sagrado das palavras. E uma canção, mesmo feita para escarnecê-los, será uma justa homenagem. O riso também dá conta do sublime.












Guardanapos de Papel
(tradução e versão  de Carlos Sandroni)


Na minha cidade tem poetas, poetas,
Que chegam sem tambores nem trombetas, trombetas,
E sempre aparecem quando menos aguardados, guardados, guardados,
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados.
Saem de recônditos lugares no ares, nos ares,
Onde vivem com seus pares seus pares, seus pares,
Seus pares e convivem com fantasmas multicores, de cores, de cores,
Que te pintam as olheiras e te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas partidas, partidas,
Entre mortos e feridas, feridas, feridas,
Mas resistem com palavras, confundidas, fundidas, fundidas,
Ao seu triste passo lento pelas ruas e avenidas.

Não desejam glorias nem medalhas, medalhas, medalhas,

Se contentam com migalhas, migalhas
Migalhas de canções e brincadeiras com seus versos dispersos, dispersos,
Obcecados pela busca de tesouros submersos.
Fazem quatrocentos mil projetos, projetos, projetos,
Que jamais são alcançados cansados, cansados,
Nada disso importa enquanto eles escrevem, escrevem, escrevem,
O que sabem que não sabem e o que dizem que não devem.
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas,
Como se fossem cometas, cometas, cometas,
Num estranho céu de estrelas idiotas e outras, e outras,
Cujo brilho sem barulho veste suas caldas tortas.

Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas,

Esvaindo-se em milhares, milhares,
Milhares de palavras retorcidas e confusas, confusas, confusas,
Em delgados guardanapos, feito moscas inconclusas.
Andam pelas ruas escrevendo e vendo, e vendo,
Que eles vêm nos vão dizendo, dizendo,
E sendo eles poetas de verdade enquanto espiam e piram, e piram,
Não se cansam de falar do que eles juram que não viram.
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas,
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas,
Lançadas ao espaço e o mundo inteiro, inteiro, inteiro,
Fossem vendo pra depois voltar pro Rio de Janeiro.



Biromes Y Servilletas

(Leo Masliah)

En Montevideo hay poetas, poetas, poetas
Que si bombos ni trmpetas, trmpetas, trompetas
Van saliendo de recónditos altillos, altillos, Altillos
De paredes de silencios, de redonda con puntillo

Salen de agujeros mal tapados, tapados, tapados

Y proyectos no alcanzados, cansados, cansados
Que regresan fantasmas de colores, colores, colores
A pintarte las ojeras y pedirte que no llores

Tienen ilusiones compartidas, partidas, partidas

Pesadillas adheridas, heridas, heridas
Cañerias de palabras confundidas, fundidas, fundidas
A su triste paso lento por las calles y avenidas

No pretenden glorias ni laureles, laureles, laureles

Sólo pasan a papeles, papeles
Experiencias totalmente personales, zonales, zonales
Elementos muy parciales que juntados no son tales

Hablan de la aurora hasta, cansarse, cansarse

Si tener miedo a plagiarse, plagiarse, plagiarse
Nada de eso importa ya mientras escriban, escriban, Escriban
Su mania su locura su neurosis obsesiva

Andan por las calles los poetas, poetas, poetas

Como si fueran cometas, cometas, cometas
En un denso cielo de metal fundido, fundido, fundido
Impenetrable, desastroso, lamentable y aburrido

En Montevideo hay biromes, biromes, biromes

Desangradas en renglones, renglones, renglones
De palabras retorciéndose confusas, confusas, confusas
En delgadas servilletas, como alchólicas reclusas

Andan por las calles escribiendo, y viendo y viendo

Lo que vem lo van diciendo y siendo y siendo
Ellos poetas a la vez que se pasean, pasean, pasean
Van contando lo que vem y lo que no, lo fantesean

Miran para el cielo los poetas, poetas, poetas

Como si fueran saetas, saetas, saetas
Arrojadas al espacio que un rodeo, rodeo, rodeo
Hiciera regresar para clavarlas en Montevideo

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